Quem era o imigrante “mal falado” por Hermann Blumenau em correspondência de 1876

Capa: Há pouco tempo se comemorou a chegada dos primeiros imigrantes “italianos” na região da antiga Colônia Blumenau, ou seja, os tiroleses. Foi um dos desafios dos gestores da colônia harmonizar o convívio de culturas tão diferentes. Em uma primeira ação, as nucleações foram organizadas fisicamente separadas. O que não perdurou por muito tempo, pois surgiram vários casamentos entre “alemães” e “italianos”, comprovando que as diferenças são sempre muito bem-vindas para que ocorram movimentações. Encontramos uma correspondência de Hermann Blumenau mencionando um pioneiro de uma família tirolesa, ao qual ele denominava “italiano”, e percebemos que referida família foi uma das pioneiras de Rio dos Cedros.

Escrevemos sobre a história não contada de Rio do Sul e os conflitos étnicos culturais entre famílias de imigrantes alemães e italianos, levando-os para a seara política e resultando na disputa de poder local, como o caso ilustrado da história de Rio do Sul.

Em 30 de março de 2015, com o responsável de documentos raros da Biblioteca Central da UFSC. Foi-nos permitido fotografar documentos raros e exclusivos da história de Blumenau – UFSC.

Temos uma série de registros fotográficos de documentos históricos de Blumenau, que se encontram no Setor de Documentos Raros da Biblioteca Central da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, alojados em uma pequena caixa de papelão em um canto de sala sem acesso do público. Digamos que foi um achado, pois muito da documentação do primeiro período histórico de Blumenau se perdeu no incêndio do Arquivo Histórico, em 8 de novembro de 1958, e nas grandes enchentes, principalmente na década de 1980.

Na UFSC, solicitamos permissão à pessoa responsável e nos foi permitido fotografar  as correspondências. Esse acervo valioso foi doado pela família do genro de Peter Wagner, pioneiro de Blumenau, oriundo de São Pedro de Alcântara, Karl Christian Renaux, de Brusque.

João Capistranos Bandeira de Mello Filho

A correspondência histórica apresentada naquele momento, é um ofício assinado pelo diretor da Colônia Blumenau, Hermann Bruno Otto Blumenau, dirigido ao Presidente da Província, João Capistranos Bandeira de Mello Filho, comentando sobre os problemas criados por um imigrante tirolês e suas práticas pouco recomendáveis dentro da sociedade da Colônia Blumenau da época. Faz referência a narrativas criadas por esse imigrante junto à comunidade formada por imigrantes tiroleses, oriundos do Tirol Austríaco, que ocupavam uma região da Colônia Blumenau. Conforme já tivemos oportunidade de comentar, por equívoco histórico regional, tais imigrantes eram denominados como imigrantes italianos.

Fotografia Oficial do Keiser Franz Joseph – Imperador do Império Austro- Húngaro. Pai da Imperatriz do Brasil, dona Leopoldina, e avô de D. Pedro II – Imperador do Brasil. Acervo do Museu dos Usos e Costumes da Gente Trentina – Rodeio SC.
Quadro do Museu dos Usos e Costumes da Gente Trentina que mostra a paisagem do local em que vieram os antepassados – Tirol.

O imigrante “mal falado” pelo fundador de Blumenau mencionado no documento histórico é Pedro Zecchini, aparentemente, de família tirolesa – não italiana -, como citado pelo fundador, uma vez que existiu um Jacob Zecchini (Giacomo Zecchini) que fora vítima de um ataque e morte por indígenas. Giacomo Zecchini é apontado como imigrante tirolês na Revista Blumenau em Cadernos, em artigo publicado em junho de 1978.
Também encontramos registro sobre essa passagem no Arquivo de Blumenau, a seguir:

“ZECCHINI, Jacob – Colono estabelecido em Tiroleses. Foi massacrado pelos bugres em seu lote nº 01, da estrada de Tiroleses, deixando mulher e um filho de 2 anos e meio, em princípios de 1879 – (Of. 2/20) nº 109 – pasta 2.79/ 1879/ doc 796.” Arquivo de Blumenau

Esclarecendo sobre essas personalidades da história de Blumenau e com o nome correto de cada um deles.

A vítima do ataque indígena, Jacob Zecchini, na verdade é Giacomo Zecchini, nascido em 1841, em Fiera di Primiero, Tirol, Império Austro-Húngaro. Giacomo migrou com a esposa, Margarita Orler, 7 anos mais jovem e com quem se casou em Tirol, antes de vir para o Brasil com seu pequeno filho, Giacomo Zecchini. A família foi citada pelo pesquisador Andrey José Taffner Fraga, como parte do sexto grupo de imigrantes. Colonizou a atual Estrada dos Tiroleses, que parte do centro de Rio dos Cedros até chegar ao município de Timbó.

Mapa da Colônia Blumenau desenhado por José Deeke em 1905. Localização do Stadtplatz da Colônia Blumenau e o local de Rio dos Cedros.
Galpão dos imigrantes localizado no Stadtplatz – centralidade da Colônia Blumenau – Ano 1868, local em que ficavam alojados os imigrantes até estarem prontas as primeiras benfeitorias no lote colonial nas regiões próximas do Stadtplatz.

A colonização de Rio dos Cedros teve início com um grupo de imigrantes provenientes de Mattarello. Migraram entre os anos de 1875 e 1876, sendo um dos primeiros grupos de imigrantes trentinos de todo o Estado.
Para relembrar, os imigrantes trentinos (ainda não existia a denominada Itália, como também não existia a denominada Alemanha). Como aconteceu com os imigrantes alemães, foram alojados no galpão dos imigrantes localizado no Stadtplatz, na Palmenalle Strassen – Rua das Palmeiras – centralidade da Colônia Blumenau. Os pioneiros de Rio dos Cedros, homens e filhos maiores, seguiam para o lote destinado à família, e as crianças e mulheres continuavam alojadas no galpão dos imigrantes do Stadtplatz, até que os homens construíssem um abrigo provisório, limpassem o terreno para a primeira plantação; então buscavam os demais familiares. Assim pode ter ocorrido com a família Zecchini.

Documento do casamento de Giacomo e Margarita.

De acordo com a documentação, na verdade, Giacomo, ou Jacob, faleceu em 24 de fevereiro de 1878, em Blumenau.

Pedro Zecchini ou Pietro Giovanni Battista Zecchini, nascido em 27 de setembro de 1839, também nascido em Fiera di Primiero, no Tirol, Império Austro-Húngaro, era o irmão mais velho de Giacomo e também migrou para a Colônia Blumenau. De acordo com a carta oficial encontrada na UFSC, tornou-se um dos inúmeros desafetos do fundador Hermann Blumenau, a ponto de ser citado na correspondência oficial do fundador de Blumenau. Os pais dos dois irmãos foram Giacomo Zecchini e Cattarina Tavernaro de Transacqua, de Fiera di Primiero, Tirol, Império Austro-Húngaro.

Giacomo faleceu com a idade de 38 anos e deixou seu filho, também chamado de Giacomo, nascido em Fiera di Primiero, no Tirol, com 3 anos de idade. Fato registrado no documento de óbito abaixo.

Documento de óbito de Giacomo Zecchini. “Aos cinco dias de agosto de um mil e oitocentos e setenta e nove, nesta freguesia de São Paulo de Blumenau, Terra de Itajahy, compareceu presente no meu cartório, o Ofs. Emer, inspetor de quarteirão no distrito Caminho Tirolês, e declarou em presença de testemunhas (…) Giacomo Zecchini com trinta e oito anos de idade, deixando sua mulher Margarita Orler (1850–1940 e um filho de três anos, Giacomo. Testamento não faz. Foi representado e sepultado no cemitério cathólico do município. E para fins de esclarecer faz esse termo…”.

Artigo da revista Blumenau em Cadernos

Fiera di Primiero, Tirol. Fonte: Wikipédia.

O filho Giacomo se casou em Lajes com Anna Maria Chizzola, em 21 de fevereiro de 1903. No documento deste casamento consta dados incorretos como: Giacomo, registrado como Jacob, nasceu em Santa Catarina e seu pai, no Tirol, fazendo com que, assim, a história vá se perdendo.

Em um determinado período histórico, os cartórios foram os grandes responsáveis em desvirtuar nomes, tonando-se fonte de grande confusão histórica.

Para relembrar, seu pai Giacomo Zecchini, irmão mais novo de Pietro Giovanni Battista Zecchini, mencionado na carta de Hermann Blumenau como Pedro Zecchini, foi vítima de um assalto indígena, onde faleceu deixando o pequeno Giacomo, também nascido em de Fiera di Primiero, no Tirol, o qual se casou com Anna, em 1903, em Lajes.

A viúva de Giacomo, mãe de Giacomo e cunhada de Pedro Zecchini, Margarita Orler (nascida em 19 de novembro de 1850 em de Fiera di Primiero, no Tirol), faleceu em Lajes em 7 de novembro de 1940, com praticamente 90 anos de idade.

Correspondência Histórica encontrada nos Documentos Raros da UFSC

Correspondência oficial e histórica de Blumenau, onde é mencionado o irmão mais velho de Giacomo Zecchini, Pedro Zecchini, ou, Pietro Giovanni Battista Zecchini em uma história contada pelo fundador de Blumenau. Pedro nasceu em 27 de setembro de 1839, em Fiera di Primiero, no Tirol. No momento da carta oficial (janeiro de 1876), contava com a idade de 36 anos.

Transcrição da Correspondência oficial 

Diretoria da Colonia Blumenau, 27 de janeiro de 1876.
Illmo e Exmo Snr.

Tenho a honra d’apresentar à V. Excia inclusos os autos, mencionado no meu Oficio N° 17 de 25 deste mez, sobre o processo, que mandei instaurar e Pedro Zecchini, empregado por esta Directoria durante algum tempo como chefe de turma e apontador de operários, por causa das falsidades e subtracções de dinheiros públicos e particulares, que comettera.
Estes crimes datão das últimas semana e podião escapar à regular e usual vigilancia e fiscalização somente pelo excessivo serviço de que o grande numero de Tyrolezes chegados nos últimos mezes e provisoriamente ocupados nas obras publicas, bem como as constantes e exageradas exigencias, impertinências, etc. da máxima parte delles erão causa e para o qual o pessoal da Directoria não era sufficiente.
Este estado da causas ficou ainda agravado pela falta do conhecimento da algaravia do italiano corrompido, que faltão os Tyrolezes, pela dita de interpretes de intelligencia e confiança e pela inclinação à mentira e trapaças, a que grande parte delles parece inclinar-se.
Em consequencia desta desagradavel ocorrencia — de resto a primeira deste genero nos 16 annos decorridos da minha administração desta colonia — modifiquei porém o modo dos pagamentos e recibos, o que porém e infelizmente torna sempre mais complicado e moroso o serviço, sem que comtudo aprezente, como nenhum outro expediente practicamente exequivel, garantia absoluta contra as ardilezas e trapaças de sujeitos perversos.
A difficuldade da inquirição preliminar, a que eu mesmo tive que proceder, e de obter incontestaveis provas, bem com o a dispersão das testemunhas em longinquas partes da colonia, demorou infelizmente o processo e o incriminado no entretanto se retirou sem passaporte.
Posteriormente descobri ainda mais tres subtracções no total de Rs17$550, chegando assim a Rs58$550, que farão provadas, mas das quaes se devem deduzir 21$000 rs de salarios, que competião ao dito Zecchini, mas que não lhe paguei.
Um minicioso processo probavelmente teria provado ainda mais outras subtrações, bem como não poucos coréos entre os proprios operarios. Mas as difficuldades e custas me fizerão desistir do alargamento do mesmo, sobretudo tendo-eu conseguido meu fim, de fazer ver e sentir aos interessados e culpados, que em breve se descobrem quaesquer ladroeiras e não fica impune o autor.
Demitti portanto immediatamente o Loechini, madei-o processar, mas — para dizer a verdade tambem por este lado — não fui muito descontente de que elle se havia retirado clandestinamente, libertando deste modo a colonia de mais um mao sujeito, porque além de ladrão, elle se havia tambem evidenciado como quem muito instigara ardilosa e secretamente os Tyrolezes para exageradas exigencias, turbulencias e insubordinações.
Os inclusos auto, porém, talvez ainda poderão servir, para quando o sugeito em questão acaso comettesse novos delitos e crimes em outras partes desta ou de outras provincias do Imperio.

Deos Guarde a V. Excia.
Illmo e Exmo. Snr. Dr. João Capistranos Bandeira de Mello Filho, Mui Digno Prezidente da Província.

O Diretor
Dr. H. Blumenau

Procuramos alguma informação sobre Pedro Zecchini, ou Pietro Giovanni Battista Zecchini e não encontramos muita coisa. Pedro ou Pietro Zcchini foi irmão mais velho de Giacomo e, também, filho de Giacomo Zecchini e Cattarina Tavernaro. Sua família residiu em Blumenau. Encontramos registros da família no estado do Rio Grande do Sul e no estado de São Paulo e em outras regiões de Santa Catarina, principalmente em Lages.

Esta correspondência oficial e histórica ilustra os conflitos existentes entre as muitas etnias de imigrantes e consequentemente, o transtorno à administração da colônia para gerenciá-los, embora tenha estado sempre aberta, mesmo diante dos desafios, para gerenciar a diversidade.

Um registro para a História.

Sou Angelina Wittmann, Arquiteta e Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade.
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@AngelWittmann (X)

Referências

        • DEEKE, José. A Colônia Hammonia 1879 – 1922 – Dia 8 de novembro, 25 anos de fundação – Blumenau em Cadernos, Tomo XXIX – Nov/Dez, N°11/12 – Blumenau. 1988.
        • GERLACH, Gilberto Schmidt. Colônia Blumenau no Sul do Brasil / Gilberto Schmidt-Gerlach, Bruno Kilian Kadletz, Marcondes Marchetti, pesquisa; Gilberto Schmidt-Gerlach, organização; tradução Pedro Jungmann. – São José: Clube de Cinema Nossa Senhora do Desterro, 2019. 2 t. (400 p.): il., retrs.
        • SILVA, José Ferreira. História de Blumenau. -2.ed. – Blumenau: Fundação “Casa Dr. Blumenau”, 1988. – 299 p.
        • TAFFNER FRAGA, Andrey José.   Imigração Trentina na Colônia Blumenau. Circolo Trentine de Rio dos Cedros. Disponível em: https://circolotrentino.com.br/site/conteudo/index.php?id=60057. Acesso em: 18 de março de 2025.
        • TAFFNER. Maria Antonieta Bellato. Família Taffner: Surgimento e trajetória na Europa e no Brasil: Descêndencia completa de Guglielmo Taffner/Maria Antonieta Bellato Taffner, Olivio Taffner e Andrey José Taffner Fraga. – Blumenau: 3 de maio, 2017. 225p.: il, color Patrocinado por José Tafner. 
        • VICENZI, Padre Victor. Um Jubileu. Blumenau em Cadernos – Tomo XVI, março de 1975, N°3. Páginas de 57 à 86. Blumenau, 1975.
        • VIDOR, Vilmar. Industria e urbanização no nordeste de Santa Catarina. Blumenau: Ed. da FURB, 1995. – 248p. :il.

 

 

 

 

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