Brumadinho: atingidos passarão a receber metade de benefício e questionam percentual do recurso à FGV

Exatos seis anos após o rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho (MG), a execução do Programa de Transferência de Renda (PTR) estabelecido pelo acordo de reparação e gerido pela Fundação Getulio Vargas (FGV) se tornou alvo de críticas do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB). A entidade aponta falta de transparência e vê como um equívoco o corte previsto para março deste ano, quando todos os beneficiários passarão a receber metade os valores que eram pagos até então. Além disso, cobra explicações envolvendo uma cláusula que destina à FGV uma fatia do rendimento dos recursos destinados ao programa.

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O rompimento da barragem em 25 de janeiro de 2019 liberou uma avalanche de rejeitos que gerou grandes impactos nos municípios da bacia do Rio Paraopeba. Ao todo, foram perdidas 272 vidas, incluindo dois bebês de mulheres que estavam grávidas. Impactos ambientais e socioeconômicos afetaram milhares de pessoas em diferentes municípios mineiros da bacia do Rio Paraopeba. Assim como ocorre todos os anos, diferentes entidades que representam os atingidos organizaram uma série de atividades para marcar a data.

“É um absurdo o corte no PTR porque a reparação está longe de estar concluída. A Vale não limpou o rio, não tirou os rejeitos. Ninguém pode pescar, não dá pra usar a água para irrigar, para consumo, enfim, pra fazer qualquer uso. Os atingidos não podem retomar a sua atividade econômica”, diz o integrante da coordenação do MAB Guilherme Camponez. Segundo ele, sem suas fontes de sustento, as famílias dependem desses recursos para comprar o básico, como como água potável e medicamentos. O alongamento do programa foi uma das principais reivindicações levantadas pelo MAB em uma marcha realizada em Belo Horizonte nessa sexta-feira (24).

O PTR foi uma das medidas previstas no acordo global para reparação dos danos firmado entre a mineradora, o governo de Minas Gerais, Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG). Ao todo, foram destinados R$ 37,68 bilhões  para uma série de medidas pactuadas. O montante que cabe ao PTR foi fixado em R$ 4,4 bilhões.

O acordo global estabeleceu o programa como substituto do auxílio emergencial que começou a ser pago pela mineradora logo após a tragédia. Na época, o benefício foi estabelecido com um valor variável a depender da faixa etária de cada atingido: um salário mínimo por adulto, a metade dessa quantia por adolescente e um quarto para cada criança.

Inicialmente, faziam jus ao benefício todos os moradores de Brumadinho, sem distinção. Nos demais municípios atingidos, o auxílio foi concedido a pessoas que residiam a até 1 quilômetro (km) de distância da calha do Rio Paraopeba. Ainda no fim de 2019, ocorreu uma alteração: o critério para acesso ao benefício foi mantido, mas o valor foi reduzido pela metade para quem não residisse em comunidades diretamente afetadas pelos rejeitos.

Com a implantação do PTR, foram feitos alguns ajustes nos critérios. Os valores, no entanto, foram mantidos. O MPF e a DPMG estabeleceram as poligonais, pelas quais se delimitou as comunidades que têm parte do seu território dentro do critério de 1 km da margem do Rio Paraopeba. Isso significa que, se um povoado tivesse algum ponto situado a essa distância, todos os seus moradores deveriam ser enquadrados como beneficiários.

A aprovação gradativa de novas poligonais e também a identificação de comunidades tradicionais afetadas geraram uma inclusão de mais de 50 mil atingidos. Somando aqueles que já recebiam os repasses desde a implantação do auxílio emergencial pago inicialmente pela Vale, há atualmente 154.964 receptores de recursos do programa.

As bases para a criação do PTR foram estabelecidas com a assinatura do acordo global em 2021, sendo a FGV escolhida como gestora por meio de um edital público lançado pelo MPMG, pelo MPF e pelo DPMG. A contratação de uma entidade independente foi uma solução apresentada pelas três instituições – que formam o colegiado responsável por fiscalizar o programa – no curso das negociações do acordo global. Elas levaram em conta as críticas dos atingidos, que se queixavam do poder que tinha a Vale para decidir quem teria direito ao benefício.

No entanto, Guilherme Camponez afirma que o contrato com a FGV costurado com as instituições de Justiça não foi precedido de nenhuma divulgação. Os atingidos não teriam sido nem consultados nem informados dos seus termos. Na cláusula sexta, ficou definido que a FGV receberia R$ 109,5 milhões para o custeio da execução do PTR. Além disso, os recursos destinados ao programa seriam depositados em um fundo. A FGV obteve o direito a 12% de todo o rendimento que superar a caderneta de poupança. A estimativa de economistas consultados pelo MAB é de que esse valor já chega a R$ 40 milhões.

“Faltou transparência. Os atingidos não participaram de nada, nem ficaram sabendo na época da assinatura do contrato. Isso nunca havia sido dito pra gente e também não há nada no acordo global sobre isso. Hoje ninguém sabe qual é o valor exato e em que ele será usado”, reclama. A FGV mantém no ar um site com informações do PTR. Lá está registrado que, até dezembro de 2024, o fundo rendeu R$ 1,158 bilhão. Mas não há discriminação do montante específico que ficaria para a FGV.

FGV avaliou impactos do benefício para a região

Procurada pela Agência Brasil, a FGV afirmou em nota que já repassou mais de R$ 3,6 bilhões aos atingidos no âmbito do PTR, classificado como “o maior programa de transferência de renda privado da América Latina”. Segundo o texto, a aplicação dos recursos gerou rendimentos que permitiram dilatar o prazo do programa, que inicialmente se encerraria em outubro de 2025.

A FGV afirma ainda que realizou uma pesquisa no último ano em que foram avaliados os efeitos do PTR para a região. “Entre os indicadores que mostram o impacto socioambiental positivo estão a melhoria de 20% em saúde, 15% em infraestrutura (urbanização e saneamento) e 25% em assistência social na região após a tragédia, impulsionando o desenvolvimento sustentável e o bem-estar das comunidades afetadas”, registra a nota.

Camponez entende não ser razoável que a FGV receba um percentual sobre o rendimento dos recursos. Ele também cobra mais transparência. “É uma instituição sem fins lucrativos. Então o que ela faz com esse dinheiro? Ela destina para alguma atividade interna? Pode ser. Mas nem isso é informado. Eu penso que esse é um recurso da reparação. É um recurso que devia estar sendo aplicado na reparação”, defende Camponez. Ele lembra também que o acordo global previu a contratação de uma auditoria externa independente para acompanhar a gestão do PTR, o que até hoje não se concretizou.

Procurado pela Agência Brasil, o MPF afirmou em nota que todos os custos da contratação da FGV estão cobertos dentro dos R$ 4,4 bilhões destinados ao PTR. O texto acrescenta ainda que o programa é atualmente submetido a uma auditoria interna. “A auditoria externa está em fase de contratação”, finaliza a nota.

Fim em 2026

Ao mesmo tempo em que se preocupa com o corte anunciado para março deste ano, o MAB teme os efeitos do encerramento definitivo do PTR, que está previsto para abril de 2026. Camponez não crê que, no próximo ano, a situação será muito diferente da atual. Em sua visão, o processo reparatório tem se dado em um ritmo bastante lento.

“Sem o PTR, as famílias vão ficar numa situação de insegurança alimentar. Vão ter a sua renda muito deprimida e isso vai afetar inclusive toda a região, porque terão os efeitos indiretos. Vai ter menos recurso circulando nas comunidades, então isso tende a gerar desemprego. É um grande equívoco acabar com o PTR, além de ser uma violação do direito das populações atingidas. A Vale tem que colocar mais recurso para mantê-lo enquanto for necessário”.

Camponez afirma que o encerramento do PTR contraria os princípios da Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), como ficou conhecida a Lei Federal 14.755/2023. Sancionada em 2023 pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, sua aprovação no Congresso  se deu após mobilizações do MAB. Em seu Artigo 3º, fica garantido um “auxílio emergencial nos casos de acidentes ou desastres, que assegure a manutenção dos níveis de vida até que as famílias e indivíduos alcancem condições pelo menos equivalentes às precedentes”.

Em nota, a Vale destaca que o PTR foi estabelecido no acordo global como uma solução definitiva para os pagamentos emergenciais. A mineradora considera que cumpriu sua parte, já que transferiu o valor fixado. “A Vale faz o pagamento e não participa da gestão dos recursos nem da execução do programa. Em outubro de 2021, a empresa realizou o depósito de R$ 4,4 bilhões previstos para esta obrigação e, desde novembro de 2021, o programa foi implementado e é gerido pelas instituições de Justiça, e gerenciado pela Fundação Getulio Vargas. Com o depósito em juízo do valor correspondente ao PTR, foi encerrada a obrigação da Vale referente ao tema”, registra o texto.

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