Afinal, pode ou não pode ter música nos bares?

Com as polêmicas recentes do Saruê Castelo ter que trocar de ponto e do Bolota’s Bar ser interditado, a discussão que já estava acesa, ficou ainda mais acalorada. Faço aqui uma reflexão sobre todo o contexto de bares e lei do silêncio. Afinal, pode ou não pode ter música nos bares?

Acredito que vocês podem achar que minha coluna é tendenciosa. Tenho todo o direito, afinal, coluna é sobre opinião.

O Problema

Difícil dizer se a quantidade de bares que trabalham com música ao vivo aumentou ou diminuiu no período conhecido como pós pandemia. O que é fácil dizer é que a paciência dos cidadãos despencou enormemente. Bares musicais tem sido alvo de frequentes fiscalizações, multas e até mesmo interdições, inviabilizando suas operações. A atuação dos fiscais tem origem nas denúncias que são feitas pelos moradores, que tem sido cada vez mais frequentes.

A denúncia em si não é um problema. Longe de mim dizer que um cidadão não deveria lutar pelo que acredita ser seu direito. O que pretendo com essa reflexão é ponderar até que ponto o silêncio absoluto de fato é um direito. Outro ponto importante é a atuação dos fiscais e a devolutiva para a sociedade. Quero também falar sobre direito individual e direito coletivo, e como isso é uma questão central em meio a toda essa polêmica. Vamos lá:

O que diz a lei?

Joãozinho resolveu passar a ter música em seu bar. O primeiro passo é a adição do CNAE 5611-2/05: BARES E OUTROS ESTABELECIMENTOS ESPECIALIZADOS EM SERVIR BEBIDAS, COM ENTRETENIMENTO (MÚSICA, APRESENTAÇÕES DE SHOWS, ENTRE OUTROS). Ou seja, se ele já tinha alvará para ser bar, agora precisa de um novo alvará, que o autorize a ser bar com entretenimento. Fazendo um breve parêntese que será útil mais pra frente, se ele quiser passar jogo de futebol já precisa providenciar a alteração no CNAE. Afinal, pela lei, vê-se que futebol na TV é considerado entretenimento e só tomar uma na calçada, não.

Pois bem, CNAE adicionado ao CNPJ, agora é hora de conseguir um novo alvará. Para a obtenção deste, há alguns anos a prefeitura de BH coloca como condição a realização de um laudo acústico. Os custos do laudo são de responsabilidade do próprio bar, que tem a liberdade de escolher a empresa especializada. Serviço fechado, os engenheiros acústicos vão até o estabelecimento, em um dia com música (o que é irônico, pois ainda não existe a autorização para tal) e fazem dezenas de medições: Esquinas, residências, com trânsito, sem trânsito, etc. Essas medições vão para o laudo, que testemunha à prefeitura que o bar está apto (ou não) a ter música no local.

Comprovação da obrigatoriedade do laudo acústico como documentação necessária para obtenção de alvará.
Comprovação da obrigatoriedade do laudo acústico como documentação necessária para obtenção de alvará.

De posse da documentação, a prefeitura então expede o alvará para o bar do Joãozinho. Difícil dizer se os laudos de fato são lidos, mas até aqui, Joãozinho fez sua parte. Seguimos.

Agora a responsabilidade do Joãozinho é controlar a altura da música, respeitando os decibéis permitidos pela lei da poluição sonora. Se não quiser clicar no link para conferir, segue o resumo:

A Lei nº 9.505 de 23 de janeiro de 2008 dispõe sobre o controle de ruídos, sons e vibrações em Belo Horizonte. Os limites de emissão de ruídos são:

  • Em período diurno (07h01 às 19h): 70 decibéis
  • Em período vespertino (19h01 às 22h): 60 decibéis
  • Em período noturno, entre 22h01 e 23h59: 50 decibéis e entre 0h e 7h: 45 decibéis.

A lei do silêncio, ruído ou como queira chamar, não fala de música especificamente. É a mesma lei para geradores de energia em hospitais, escolinhas, igrejas, e motos com escapamentos adulterados. Tudo é ruído, inclusive a cultura.

É recomendado que Joãozinho faça a aquisição de um bom decibelímetro. Assim ele mesmo consegue fazer as medições recomendadas pela empresa que emitiu o laudo acústico e ir controlando o som de acordo com os decibéis permitidos pela fiscalização.

Feito tudo isso, podemos dizer que o bar do Joãozinho está cumprindo a lei. Mas isso não significa que seus problemas acabaram.

Começam as fiscalizações

Veja bem, em momento algum a lei da poluição sonora diz que é proibido incomodar as pessoas. Até mesmo porque, incômodo é uma questão muito subjetiva. A lei simplesmente dita quais limites precisam ser respeitados. E é fato que quando Joãozinho decidiu colocar música em seu bar, não agradou a todos.

Em um dia qualquer, para em frente ao bar um Doblô da guarda municipal. Eles fazem a escolta dos fiscais que, movidos por uma denúncia, vão investigar o que está acontecendo no bar. Pedem o alvará, tudo certo. Reforçam as leis, maravilha. Fazem medições com seus aparelhos e comparam com o aparelho do Joãozinho. Tudo nos conformes, obrigado e até breve.

Essa deveria ser uma visita padrão, considerando que o Joãozinho de fato está cumprindo a lei, mas na prática é bem diferente. Na verdade, essa até pode ser a realidade na primeira visita, mas as que seguem costumam ser bem diferentes.

O primeiro problema que identificamos nas fiscalizações é a famosa desinformação. Chamamos de desinformação a situação onde um agente garantidor da lei compartilha coisas que não são verdade. Creio que isso é feito para confundir ou amedrontar o empresário. Entre as desinformações que escutamos por aí, tem fiscal falando que os limites de decibéis são mais baixos do que o que está na lei. E outros afirmando que o laudo acústico não é válido porque foi o próprio empresário que contratou (O que é uma piada, pois nem existe a opção da prefeitura contratar – ou realizar o laudo ela mesma).

O segundo problema é a variação dos profissionais que fazem a fiscalização. Obviamente isso é necessário, pois todo mundo precisa descansar e existem escalas a se cumprir. No entanto, visitas feitas por profissionais diferentes, sempre desconsideram o que já veio sendo conversado nas outras visitas. Um novo fiscal pode endurecer o discurso por vontade própria. Neste caso, temos relatos de situações onde os novos fiscais dizem abertamente “o fiscal que veio aqui falou tudo errado, vocês estão descumprindo a lei sim“.

O terceiro problema é a ironia da repetição das fiscalizações. Como o agente precisa investigar mediante a uma denúncia, vai precisar sair do escritório todos os dias da semana se um morador obstinado se dispuser a denunciar todos os dias. A impressão que dá é que o fiscal se cansa de fazer o mesmo trabalho todos os dias. E aí, ao invés da prefeitura ter uma postura mais firme com o morador, opta por endurecer com o empreendedor, começando a aplicar multas para ver se a música acaba – Muito embora o empreendedor esteja no seu direito, também garantido por lei. Aí você me pergunta: Mas Pedro, como aplicar multas se Joãozinho está cumprindo a lei?

Entra em cena o quarto problema (até rimou): Os fiscais tem a fé pública. Você não sabe o que é? Trata-se do ato de conferir autenticidade a um ato. É a confiança atribuída pelo Estado aos agentes para prática de atos públicos. Em outras palavras, é a suposição de que o testemunho do fiscal é verdade absoluta. E qual o impacto disso? Vamos lá:

A medição precisa acontecer na casa do denunciante. Mas como as denúncias podem ser anônimas, o fiscal não mostra para o Joãozinho onde fez a medição, só diz que foi auferido e que estava acima do permitido. E pronto. Não existe espaço para averiguar a veracidade da medição ou entender se de fato a composição do ruído vem somente do bar que está sendo fiscalizado. E essa composição é relevante, porque um bar que está em uma rua movimentada vai ultrapassar os decibéis permitidos até mesmo se estiver fechado. O “ruído” do estabelecimento se junta ao do trânsito e de outras conversas audíveis e o decibelímetro capta isso tudo.

Aí é multa em cima de multa. É possível recorrer das multas? Sim. Mas não conheço alguém que tenha tido sucesso na empreitada.

As soluções propostas pela “parte incomodada” e porque elas não funcionam

Em meio a toda essa história, cidadãos e associações de moradores tem falado muito sobre dois temas: Restringir a música a espaços fechados com devido isolamento acústico e também a criação de corredores culturais, que seriam locais específicos onde haveria flexibilização nos limites dos decibéis.

Embora sejam soluções e todas as soluções precisam ser consideradas no momento, não acredito que sejam as melhores saídas.

Restringir a música a estruturas de boate limitaria enormemente a oferta da mesma. Goste ou não, é inegável que música e festa são objetos culturais extremamente relevantes para o brasileiro. Neste cenário proposto, poucos empresários teriam caixa para investir nessas estruturas e, mesmo os que teriam caixa, precisariam elevar o preço e cobrar uma entrada mais onerosa, uma vez que investimento precisa ter retorno. Assim, a música se elitizaria como os estádios de futebol. Música de graça, ou mesmo couvert artístico acessível, seriam situações impensáveis.

Corredores culturais caminhariam para o mesmo destino. A especulação imobiliária nessas regiões seria enorme, demandando grandes investimentos dos empresários, se não em estrutura, em aluguéis.

O problema é a música em si?

Importante também considerar que a música não é o único problema. Como a lei do ruído é sobre sons no geral, os bares são responsabilizados até mesmo pelo barulho que os clientes fazem. Mesmo quando os bares são na rua e, em teoria, os clientes estão utilizando espaço público, bares acabam tomando multa. A alegação é que as pessoas não estariam ali se não fosse o bar, por isso cabe ao Joãozinho mandar a turma calar a boca. Sim, em espaço público. Agora voltando à história do futebol, imagine quantos decibéis tem um grito de gol? É multa para uma vida.

Nessa pegada tem bar tomando multa por “burburinho de clientes” e outros até mesmo querendo cancelar o parabéns pra você. É mesmo o fim dos tempos. Se a gente já não tem tido muito o que comemorar, em breve não poderemos sequer comemorar o que não temos tido.

O que, na minha opinião, precisa ser feito

O primeiro passo é uma escolha lógica: BH quer mesmo ser a capital dos bares? A prefeitura precisa se decidir e parar de usar o título quando convém. Nas palavras da minha sócia, é a tal da maquiagem de família perfeita. Para fora dos limites do município, somos a capital dos bares e cidade criativa da gastronomia. Mas dentro de casa, não tem uma decisão sequer que beneficie o comércio.

Aos moradores que estão incomodados cabe a aceitação. Da mesma forma que aceitamos o barulho dos ônibus de madrugada que nos fazem acordar, a gritaria das crianças chegando e saindo da escola, a movimentada saída de uma faculdade às 22h30, caminhões chegando na doca do supermercado de manhã cedo e tantos outros fazedores de barulho comuns e necessários na nossa rotina. OS BARES TEM A MESMA IMPORTÂNCIA: É cultura, convívio, movimentação da economia, geração de emprego, celebração e tantas outras coisas que fazem de nós sermos quem somos.

Achar que um grande centro como Belo Horizonte vai permanecer da mesma maneira o resto da vida, não é somente uma ilusão, mas o cúmulo do pensamento retrógrado. É impossível garantir que sua vizinhança vai permanecer idêntica para o resto da sua vida. Comércios vão surgir e eles dão vida à cidade. Obviamente não sou a favor de bares diferentes do bar do Joãozinho. Sei que existem casos onde os limites são extrapolados, mas na maior parte das vezes não é isso que acontece. O morador se sente incomodado porque as coisas mudaram e denuncia repetidamente, ainda que o bar esteja dentro dos limites legais.

Por fim, é legítimo que todo cidadão consiga descansar. Mas esse descanso é um direito individual, ao passo que frequentar bares com entretenimento é um direito coletivo. Acho mais fácil resolver casos pontuais do que cercear o direito da maioria. Janelas acústicas, por exemplo, resolvem o problema de poucos e permite que muitos possam ficar até mais tarde no bar ao lado. Outra coisa que precisa ser feita são fiscalizações mais transparentes, com devolutivas ao denunciante e também à sociedade. Isso pode preservar bares que cumprem a lei, conferindo a eles títulos de “Bar bacana! Averiguamos e está tudo certo. Confira nesse link vídeos das fiscalizações e medições”.

Mas para isso tudo tem que querer. E em ano de eleição, será que alguém vai pegar pra fazer?

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