“Paraíso no papel, inferno na realidade”

Desde junho de 2024 até as fortes chuvas do dia 17 de janeiro e outras mais recentes, muitos moradores de várias ruas situadas na base e nas encostas do leste do morro da Ponta Aguda em Blumenau vivem em constante apreensão e alguns não conseguem dormir direito devido ao susto e os grandes prejuízos materiais sofridos. A pressão da água sob uma das casas, diga-se de passagem, irregularmente edificada sobre uma tubulação, foi tão forte que o piso se rompeu e pedaços do assoalho bateram no teto.

Este autor analisou várias imagens do Google Earth e feitas por drone do loteamento e visitou pessoalmente duas das mais atingidas, dentre as oito ruas afetadas, quais sejam, as ruas Uruguaiana e Rosário. Mesmo vários dias depois de 17 de janeiro o cenário era assustador, preocupante mesmo.

O loteamento vizinho em implantação, potencializador dos estragos, para espanto de muitos, conforme consta, estaria totalmente legalizado, estando de posse de todas as licenças e obedecendo as determinações dos respectivos alvarás emitidos pelas autoridades competentes.

Uma matéria feita pelo eficiente repórter Paulo César para o SCC Comunidade Meio Dia, a empresa que implanta o loteamento, principal pivô da crise, alega que as obras vêm sendo acompanhadas pelos órgãos fiscalizadores, que a chuva causou problemas em toda a cidade e não apenas ali, que, ao final dos trabalhos, todos os problemas históricos de drenagem na região estarão equacionados e que o foco é a sustentabilidade e a preservação ambiental (sic!).

A questão da alegada sustentabilidade baseia-se principalmente no fato de terem usado apenas 49 por cento do terreno, restando 51 por cento com vegetação preservada. Um caso perfeito de quem vê o copo meio cheio ou meio vazio.

Seria válido o uso da expressão sustentabilidade, caso estivéssemos falando de outro terreno de cerca de 400 mil metros quadrados, menos íngreme e não esse em questão, que se inicia na cota de 15 metros acima do nível do mar e segue avançando morro acima até a cota aproximada de 185 metros, totalizando mais de um quilômetro em linha reta de terras escavadas e rochas removidas.

Com cerca de 170 metros de desnível, equivalente a um edifício de 57 andares da base até o topo e quase 200 mil metros de terras totalmente expostas, sem que tivesse havido a imediata cobertura do solo para evitar erosão, será que a isso pode-se aplicar o termo sustentabilidade?

O Japão, país montanhoso em mais de dois terços de seu território, praticamente não ocupa suas encostas e a população se adensa nas áreas planas. Naquele país, figurativamente falando, mal o trator passa, o solo escavado atrás dele imediatamente recebe cobertura de vegetação ou outro tipo de proteção, sem dar tempo para acontecer tudo o que está acontecendo no morro da Ponta Aguda em Blumenau.

Como explicar então os alvarás expedidos pelos órgãos “competentes” que permitiram tamanho descalabro? Como explicar nascentes atingidas e encostas de mais de 25 graus desmatadas e desmatamento também em áreas de preservação permanente de margens de cursos d’água? Por que que, quando denunciada a obra na Prefeitura de Blumenau a alegação imediata era de que se tratava de obra licenciada pelo IMA, do governo estadual? E se a execução dessa obra não obedeceu a legislação municipal, por que o município não interviu em tempo hábil?

Se a retirada total da vegetação em 49 por cento da área foi para facilitar os processos de compensação ambiental florestal, como foi explicado na Prefeitura, evitando que cada um dos futuros proprietários o fizesse individualmente, minimizando em quase 90 por cento o impacto ambiental e isso causou tudo o que causou, qual a justificativa?

A chuvarada excepcional de tantos prejuízos também em muitos outros pontos da cidade, não é justificativa para tudo o que aconteceu neste caso específico. Deixar quase 200 mil metros quadrados de terras expostas naquele terreno montanhoso, ao mesmo tempo esperando que não acontecessem chuvas fortes é o mesmo que imaginar o paciente de peito aberto e escancarado sobre uma mesa de cirurgia com um dos quatro pés quebrados, porta da sala deixada aberta, aguardando o retorno dos cirurgiões em tranquila saída para o jantar.

Desde dezembro de 1979 existe a Lei Federal 6.766/79 que regula a ocupação dos espaços urbanos. Essa lei determina que loteamentos e desmembramentos, nos casos de terrenos com declividade igual ou superior a 30 por cento, ou que ocorram em áreas sujeitas a alagamentos, recebam todas as medidas de precaução, visando a segurança ambiental e a dos futuros moradores.

A cidade teve vários tristes precedentes. O loteamento “Portal da Saxônia”, ali mesmo, no mesmo morro da Ponta Aguda, foi aprovado anteriormente a esta lei e deu no que deu: inúmeros e graves transtornos para as comunidades vizinhas e para a sociedade como um todo durante muitos anos que se seguiram à inauguração do loteamento.

Num desses transtornos, a rua das Missões ficou três dias interditada, atingida por enorme deslizamento de terra que se iniciou nos altos da rua Hasselfede, atravessou a rua num nível quase 200 metros abaixo, atingindo propriedades e indo parar no rio Itajaí Açu. O motivo? Simplesmente não se obedeceu ao princípio de adaptação à topografia: os arruamentos abertos foram muito retilíneos, causadores de enormes movimentações de terra, potencializando muitos casos de instabilidades de solo.

Ali ao lado, o loteamento Ferdinando Schadrack, mais antigo ainda que o Portal da Saxônia, ao contrário, foi implantado sobre o mesmo tipo de geologia e também antes da vigência da Lei Federal 6766/79. No entanto, este loteamento, ainda que implantado em área íngreme, foi feito em harmonia com a topografia, com minimização de escavações e movimentações de terra. Como resultado, foram raríssimos os problemas ali ocorridos desde então.

Numa espécie de marcha a ré no túnel do tempo, sob o beneplácito das autoridades, agora surgiu este novo loteamento padrão arrasa quarteirão, no morro da Ponta Aguda.
Os transtornos potencializados pelo loteamento ora comentado geram, naturalmente, importantes reflexões, como, por exemplo:

1) Ocupação de encostas costumam ser problemáticas, exigindo sérios cuidados que encarecem sobremaneira qualquer empreendimento e seriam, em princípio, desaconselháveis;
2) As ocupações irregulares de solo, condenáveis em quaisquer circunstâncias, principalmente em terrenos íngremes e demais áreas de risco, também são desaconselháveis e exigem rigorosa e eficaz fiscalização que as coíbam;
3) Muitas ocupações irregulares em Blumenau não somente não foram eficazmente coibidas, mas, também, criminosamente estimuladas por candidatos ou detentores de cargos públicos que botaram panos quentes sobre a situação, vendo seus ocupantes não como seres humanos, mas, como votos nas urnas;
4) Está certo que entre os mais atingidos, no caso aqui tratado, constam exatamente casos de antigas ocupações irregulares e absurdas construções até sobre tubulações de córregos, mas, isso não justifica todos os transtornos causados, ou melhor, potencializados pelo loteamento vizinho em fase de implantação;
5) Enquanto tudo isso acontece o erário público passa a dispender vultosos recursos para remediar essas situações e quem paga a conta? Que dúvida! Todos nós, com nosso suado imposto de cada dia;
6) Será que o poder público vai, finalmente, aprender algo com tudo isso? Depois da aprovação da construção do prédio Tryanon, justo sobre a faixa onde os japoneses da Jica recomendaram que ficasse livre para um grande parque Central e para vazão do rio em caso de enchentes, vendo a cidade rumar na contramão do conceito de cidades-esponja, com a destruição da prainha do rio Itajaí e a implantação da obra na margem esquerda, e depois que o poder público municipal anunciou a regularização de dois dos mais problemáticos loteamentos clandestinos da cidade, nos morros Jerônimo Correia e Artur, no Progresso, não sei não;
7) Mas tem como melhorar as coisas. Que na próxima discussão do Plano Diretor que, ao que consta, acontecerá logo, os políticos enxerguem pessoas como seres humanos e não como votos e que os planejadores se lembrem que não só de especulação imobiliária vive uma cidade.

Se a sociedade não acordar para tudo isso que está acontecendo, daqui a 50 anos, estarão todos discutindo essas mesmas coisas. Que saudades do austero, autoritário e rude Doutor Blumenau, como alguns o pintam! Mas, pelo menos, nosso fundador nos legou as cidades do vale num padrão de ocupação relativamente bem organizado, cujos reflexos até hoje podem ser percebidos na precisão da maioria dos Registros de Imóveis, situação para a qual ainda há tempo de retornar, ou, pelo menos, remediar.

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