Insônia programada.docx

            Não preciso consultar o pulso pra saber que são três da madruga. E a essa altura, sincerão?, nem tento mais pegar no sono.

            Tiro o edredom da perna direita. O quarto iluminado pelas luzes da rua ultrapassando a fresta sem blackout. No travesseiro grudado ao meu, ela apagadíssima. Mesmo sem muita vontade e mais pra matar o tempo, levanto e rodeando a cama: banheiro.

            Xixi feito volto pro meu lado, passando por cima dela. Eu sei que mesmo dormindo ela vai reclamar num resmungo, e talvez, dar uma acordada. E quem sabe o que eu busco é que ela acorde mesmo, e fique esses próximos trinta e poucos minutos me fazendo companhia. Mas contra todas as possibilidades, eu peso meu corpo atravessando o dela deitado de barriga pra baixo e ela só vira a cabeça pra longe de mim.

            Essa micro insônia programada começou de um jeito meio tosco. Já faz o quê? Dezenove dias. Isso. Porra. Dezenove dias. E até agora eu fico naquele e se.

            E se naquela manhã eu tivesse focado em alguma leitura, ou me perdido no Instagram, ou mandado uma liçãozinha do duolingo pra corujinha falecida parar de me atazanar. A caneca de café acabaria durante uma das atividades, eu levantaria da poltrona pra começar o dia — inocente sobre minha noite.

            Mas fiz a idiotice de consultar os dados do meu sono, captados pelo relógio.

            Acessei o aplicativo e tava lá o gráfico mostrando as 8h19min que dormi.  Barras largas azul Bic de sono essencial, quatro picos curtos e um longo pro fim da madrugada do azul mar báltico do REM, duas gotas escorridas do sono profundo ainda na tonalidade do oceano, e em laranja, um pico flamejando acordado entre 3h e 3h33.

            Me lembrava zero desse acordado e não fosse bem às três da manhã assumiria como um erro na medição e pronto. Mas eu, da categoria criança nos anos 90, tremi vendo que tinha ficado acordada mais de meia hora – sem lembrar – bem no horário do trânsito dos espíritos.

            Num nervoso fui consultar as noites anteriores e descobri que o padrão acordado entre 3h e 3h33min já se repetia a dias. E eu sem lembrar. Bem às três da manhã. Talvez batendo o maior papo com um ou dois ou dez espíritos.

            Aí não deu outra. Na noite depois que consultei os dados, às três da manhã meus olhos abriram —  e eu tomei consciência disso. Naquela madrugada é obvio que acordei ela que babava no travesseiro ao lado, só esperando um vulto aparecer pro converse.

            Mas já passadas dezenove madrugadas ninguém apareceu. Mesmo assim, como se só depois desses trinta e três minutos acordada o relógio estivesse permitido a registrar os azuis do sono, meu corpo fica consciente e já sem medo esperando possíveis contatos espirituais, aguardando autorização pra dormir.

            Encaro ela deitada de barriga pra baixo, agora com o rosto virado pro meu. Sinto minhas pálpebras pesarem. Não preciso olhar pro meu pulso pra saber que hora são. Acabados os trinta e três minutos de insônia programada, eu capoto até vibrar a hora de acordar.

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