Caminho das armas: mapeamento da PF mostra que fuzil viajou mil km e foi usado em diferentes assaltos no país

Banco de dados nacional, coordenado pela Polícia Federal, permitiu a reconstituição da rota. Caminho das armas: como PF mapeou deslocamento de fuzil por mais de 1.300 quilômetros
Um arsenal do crime, compartilhado entre quadrilhas. A reportagem especial de hoje investiga o caminho das armas, a partir de um mapeamento feito pela Polícia Federal. Você vai ver que um único fuzil “viajou” mais de mil quilômetros. E durante quase um ano e meio, foi usado em diferentes assaltos pelo país.
Os relatos de Carla e Gustavo descrevem o desespero diante da ameaça provocada por uma arma de guerra. Mas, apesar de parecer uma memória compartilhada, eles viveram diferentes episódios de violência. Separados por mais de sete meses e 600 quilômetros de distância. E unidos por um elemento: um fuzil usado pelos bandidos estava nas duas ações… mega-assaltos que aterrorizaram as cidades de Araçatuba, em São Paulo, e Guarapuava, no Paraná.
“Eles vêm muito bem esquematizados, eles são muito bem organizados”, diz Carla. “Tinha muita munição”, diz Gustavo.
Nesta reportagem, você vai entender como um banco de dados nacional, coordenado pela Polícia Federal, permitiu a reconstituição da rota feita por um fuzil. A arma rodou mais de 1.300 quilômetros e foi usada em pelo menos mais um crime até finalmente ser apreendida. E esse é apenas um dos muitos casos de armas viajando centenas de quilômetros por todo o território brasileiro que foram descobertos pelo SINAB – o Sistema Nacional de Análise Balística.
“É uma nova forma de trabalhar, proativa, que tende a levar a um número muito maior de soluções de crimes cometidos com o uso de arma de fogo”, diz o perito criminal Lehi.
Araçatuba, 29 de agosto de 2021. Um motorista de aplicativo circula numa noite de domingo. Numa rua escura, começa o terror. “Achei que era uma blitz. Ele se aproximou, apontou o fuzil e mandou descer.”
Dezenas de bandidos executam uma ação coordenada para dominar a cidade. Gustavo é obrigado a ligar para a polícia.
“Mandava falar a cidade, que a gente estava sendo refém de um assalto a banco, eles davam a rajada. Sempre rajada, sempre rajada com fuzil. Era muito forte”, lembra Gustavo.
Enquanto Gustavo e outros moradores são feitos reféns, o batalhão da Polícia Militar é fuzilado. Os alvos dos criminosos são duas agências bancárias. Ao lado de Gustavo, um bandido é atingido pela polícia. O que acontece na sequência mostra a importância dos fuzis para a quadrilha. “O fuzil caiu, e aí um deles mandou o outro refém ir buscar”, lembra Gustavo. “Não deixou o fuzil para trás, levou o fuzil.”
Na fuga dos criminosos, reféns são usados como escudo humano no capô de um carro. Gustavo fica a centímetros do cano da arma. O megaassalto deixa um prejuízo financeiro de R$ 17 milhões. Quatro são mortos– dois moradores e dois criminosos – e cinco pessoas feridas, um deles é Lucas, atingido por dois tiros. Assim como o projétil que atingiu Lucas, centenas de vestígios por toda a cidade. É a partir deles que começa o trabalho da perícia. “É o projetil disparado por arma de fogo. Todo contado deixa uma marca. A partir dessas marcas é possível recontar uma história”, diz Jesus Antônio velho, perito criminal e professor da USP.
Os momentos de terror em Araçatuba acabaram quando os criminosos fugiram levando milhões de reais dos bancos. Mas a polícia descobriu que esse armamento pesado continuou nas mãos dos bandidos e foi utilizado em outras ações violentas no país.
Guarapuava, 17 de abril de 2022. Outra noite de domingo, em plena Páscoa. Carla é surpreendida enquanto aguarda o marido voltar do plantão. Ela escuta o início da tentativa de outro megaassalto. O alvo: uma empresa de transporte de valores. No batalhão, que fica em frente à casa, o cabo Ricieri Chagas, marido da Carla, também escuta o barulho. Ele e dois colegas saem em uma viatura, mas são emboscados. Os três policiais são atingidos. Dois sobrevivem.
Mas, seis dias depois do ataque, Ricieri morre em decorrência do tiro que levou na cabeça. O coronel Hudson Leôncio Teixeira, atual secretário de Segurança do Paraná, era o comandante da Polícia Militar do estado quando aconteceu o ataque, que terminou frustrado: os assaltantes fugiram sem levar o dinheiro da empresa de valores. “Ele (fuzil) tem um valor muito alto. Não é uma arma comum”, diz.
Armas desse tipo estiveram tanto no ataque de Araçatuba quanto no de Guarapuava, crimes do chamado novo cangaço: quando cidades são totalmente dominadas. E, quando os vestígios foram comparados, confirmou-se que pelo menos um dos fuzis esteve nos dois eventos.
“Até hoje nós temos obtido ligações, dos materiais coletados e inseridos nos sistemas provenientes daquela ocorrência”, diz o perito Lehi dos Santos. Lehi é o coordenador do Sistema Nacional de Análise Balística, que reúne dados de crimes registrados em todo o Brasil.
Em 2022, o Fantástico mostrou os primeiros passos da plataforma. Em três meses de atuação, tinham sido identificadas seis ligações entre diferentes crimes cometidos com uma mesma arma, os chamados “hits”. Hoje, esse número passou de quatro mil, incluindo o fuzil que aterrorizou Gustavo e Carla.
De volta ao interior de São Paulo, o fuzil finalmente chegou ao fim de sua viagem.
Campinas, 20 de janeiro de 2023.
Bandidos mascarados entram em um bar e matam duas pessoas. Menos de uma semana depois, a arma é apreendida e vem a confirmação: “Quando se cadastrou isso no banco, observou-se que este era o fuzil que havia estado em Araçatuba e que havia estado em Guarapuava”, diz o perito.
O SINAB também identifica armas usadas para cometer diversos crimes em um mesmo estado. Elas viajam menos, mas matam mais.
Curitiba, janeiro de 2022. Em menos de um mês, uma mesma pistola é usada numa série de assassinatos. São nove ataques no total, todos no entorno de Curitiba. Nas primeiras 24 horas, a pistola percorre dez quilômetros e é usada para matar quatro pessoas. Cinco dias depois, mais um ataque que deixou três mortos. Nas duas semanas seguintes, são 155 quilômetros de deslocamento e mais sete homicídios. A princípio, cada ataque foi investigado isoladamente. Apenas meses depois, com os vestígios adicionados ao SINAB, foi possível concluir que tinham sido cometidos pela mesma arma. Para funcionar com a máxima eficiência, o SINAB depende da perícia das polícias estaduais.
Repórter: Quais são os gargalos do sistema hoje?
Lehi: Você conseguir, no local do crime, coletar ou nos institutos de medicina recuperar esse elemento. Na balística fazer uma limpeza, fazer uma triagem e só então ele vai estar pronto para inserção. Falta pessoal em quantidade suficiente para analisar esse tipo de material.
Depois de viajar mais de 1.300 quilômetros nas mãos dos bandidos, o fuzil 5.56 está aqui, olha: guardado, armazenado numa delegacia de Campinas, aguardando para ser destruído pelo Exército Brasileiro. Aqui dá para ver, olha, muitas marcas de uso das diversas ações criminosas em que o fuzil foi utilizado.
O DNA da arma vai continuar armazenado digitalmente no SINAB. E, assim, mesmo após a destruição, a polícia vai poder descobrir se esse fuzil foi utilizado em ainda mais ações criminosas.
Repórter: O que as conclusões significam para vítimas e familiares de vítimas?
Jesus: Para familiares que perderam seu ente querido por um conflito armado, por violência armada, o SINAB é mais do que um sistema tecnológico. É uma esperança de que esse crime não permanecerá no esquecimento.
Repórter: Você acha que vai esquecer isso tudo um dia, Gustavo?
Gustavo: Você não esquece. É uma memória que não sai da cabeça.
Repórter: Três anos depois dessa noite tão violenta, como fica essa dor?
Carla: Tudo vivo na memória, como se fosse ontem. As pessoas costumam dizer: ‘passa’. Não passa. Não passa. O nosso bem maior eles levaram, que para nós não tem preço.
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